DORAS E CARMOSINAS
Fernanda Montenegro
Há momentos em que os anos vividos
nos obrigam olhar em volta e fazer uma revisão das nossas perdas e dos nossos
danos. Se hoje estou sendo agraciada com a mais alta condecoração de nosso
país, é porque sou resultado de muitas influências e convivências. Centenas de
companheiros e personagens me formaram, me educaram e estão comigo sempre. Não
me refiro só a minha família de sangue, mas principalmente à minha família de
opção...
Mas existe o antes. A infância. E –
porque não? O período da minha educação primária. Acho que é aí que tudo
começa. Ao trabalhar o mundo da professora Dora de Central do Brasil, lá na
infância é que fui buscar, na minha memória, as primeiras professoras que me
alfabetizaram. Credenciadas, respeitadas, prestigiadas professoras primárias da
minha infância. Professoras de escolas públicas que eu freqüentei, no subúrbio
do Rio.
Eu me lembro especialmente com
muito carinho de dona Carmosina Campos de Menezes, que me alfabetizou. E mais
do que isso, que me ensinou a ler, o que é um degrau acima da alfabetização.
Naquele tempo, as professoras ainda se chamavam Carmosinas, Afonsinas, Ondinas.
Busquei na memória a figura de Dona Carmosina para me aproximar da professora
Dora (para mim, personagem não é ficção). E vi como seria trágico se a minha
tão prestigiada e amada Dona Carmosina viesse a se transformar, por carências
existenciais e sociais, numa endurecida e miserável Dora. Foi essa visão de
tantas perdas que me deu o emocional da cena final do filme quando Dora escreve
“tenho saudade de tudo”.
Saudade é uma palavra forte e uma
forma profunda de chamamento, de invocação. Entre Carmosina e Dora lá se vão
sessenta anos. Penso que minha vocação de atriz foi sensibilizada a partir das
leituras em voz alta, leituras muito exigidas, cuidadas, orgânicas, que nós
alunos fazíamos usando os livros de português do antigo curso primário. As
primeiras coisas que decorei na vida foram dois poemas que Dora Carmosina
mandou (é essa a palavra, mandou) que decorássemos nas férias de dezembro:
“Meus oito anos” de Casimiro de Abreu e “Canção do exílio” de Gonçalves Dias.
Na volta das férias naquele ano de 1937, eu, mesmo tímida, envergonhada e
encantada declamei: “Oh! Que saudades eu tenho da aurora da minha vida, da
minha infância querida que os anos não trazem mais. Que amor, que sonhos, que
flores, naquelas tardes fagueiras, à sombra das bananeiras, debaixo dos
laranjais”. Essas bananeiras e esses laranjais não eram licença poética. Os
subúrbios de nossas cidades ainda não tinham sofrido essa degradação ambiental
que infelizmente se fez presente com o passar dos anos. Vi muitos Brasis entre
esses meus oito anos, os oitos anos do poeta e essas duas mulheres: Carmosina e
Dora. Vejo essa passagem de tempo, claro, com alegrias e ganhos, mas também com
muitas perdas e dor. Sou atriz e confesso a minha deformação profissional: esse
sentimento de perdas, essa nostalgia me ajudaram a resgatar o emocional dessa
desprotegida e amarga Dora ao intuir que dentro dessas Doras desiludidas existe
sempre uma Carmosina à espera de um ombro e de um socorro.
Senhor Presidente, nesta nossa
confraternização de artistas e autoridades como não lembrar o milagre que a
educação e a cultura produzem em todo ser humano. É este, me parece, o espírito
que nos une aqui, neste espaço, e por estarmos diante da mais alta autoridade
de nosso país, que é Vossa Excelência, a herança cultural da reivindicação
artística e social se apresenta...Mas, Vossa Excelência é um democrata e um
professor, por isso peço a Vossa Excelência me dar o direito de não resistir,
mesmo porque acredito que estamos numa concordância de vontades. Senhor
presidente, precisamos urgentemente de muitas, muitas Carmosinas e, se possível
nenhuma Dora. Vossa Excelência tem poder para transformar as Doras em
Carmosinas. O país lhe deu esse poder. Eu tenho um sonho que certamente é
também um sonho de Vossa Excelência e de muitos, muitos brasileiros. Eu tenho um
sonho (parodiando o notável reverendo americano) que um dia, realmente, todas
as desesperadas Doras serão resgatadas desses ônibus perdidos que atravessam esse
nosso sertão de miséria e que a elas será dado nem que seja uma parcela daquele
reconhecimento e respeito social das professoras Carmosinas da minha infância.
Doras com visão de futuro, com auto-estima, economicamente ajustadas.
Professoras Doras inventivas, confiantes, no seu magistério para que possam ser
amadas como seres humanos e (por que não?) como personagens também. Muito
amadas e lembradas por todos os Vinícius e todos os Josués de nosso país. Mesmo
assim prefiro as Carmosinas... Que Dora compreenda e me perdoe. Vale a troca.
Para o fortalecimento da nossa educação, da nossa cultura, vale a pena, senhor
presidente, se a nossa alma, isto é, se a realização do sonho de todos nós, se
essa realização não for pequena. Faço de Dora e Carmosina minhas companheiras
neste meu agradecimento. Ignorá-las seria desprezar a minha e a realidade da
minha, não digo velhice, mas da minha madureza.
1. Esse texto foi lido por Fernanda
Montenegro quando recebeu do então Presidente Fernando Henrique merecida
homenagem pela premiação do filme dirigido por Walter Salles, Central do
Brasil, onde ela vive a personagem principal, uma professora que vive de
escrever cartas para analfabetos na estação Central do Brasil no Rio de
Janeiro.
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